Foto: Ed Alves/CB
Uma das principais bandeiras do governo do presidente Jair Bolsonaro (PL), o Auxílio Brasil — programa que substituiu o Bolsa Família — é inacessível para uma boa parte dos brasileiros que vive na pobreza ou na miséria absoluta. Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), divulgada recentemente, conclui que metade das pessoas em situação de rua no Brasil não possuem registro no Cadastro Único (CadÚnico), do governo federal.
Conforme dados do Ministério da Cidadania, até maio de 2022, mais de 86 milhões de pessoas em situação de rua estão cadastradas no CadÚnico em todo o país. Outras milhares de pessoas sequer sabem que têm direito ao Auxílio Brasil, que teve o valor elevado de R$ 400 para R$ 600 a partir deste mês. Devido à falta do registro, muitos cidadãos não conseguem acesso aos benefícios sociais do governo e continuam invisíveis às estatísticas, que acabam não refletindo a realidade do universo de vulneráveis no país.
Embora muitos se enquadrem nas condições de elegibilidade do Auxílio Brasil — programa que substituiu o Bolsa Família —, por não terem renda mínima, casa e dependerem da caridade de instituições e pessoas comuns, milhares de pessoas que têm direito não conseguem ter acesso ao benefício de R$ 600, que deve manter esse novo valor, pelo menos, até dezembro.
A frequência escolar de crianças e adolescentes é um dos requisitos para que uma família em extrema pobreza ou na pobreza tenha direito a receber o Auxílio Brasil. Fabiana Leandro da Silva, 38 anos, por exemplo, tem sete filhos mas mas não consegue o benefício, mesmo desempregada, porque as crianças não estão matriculadas na escola.
"Eu vim do Pará para Brasília há quase dois anos. Assim que chegamos, o pai dos meus filhos faleceu e não consegui mais voltar. A transferência da escola dos meninos ficou lá, estou vendo se me mandam pelo correio. Eu não tenho o que fazer a não ser esperar. Não tem quem resolva o meu problema", lamenta a moradora da comunidade Santa Luzia, na Cidade Estrutural, próxima à capital federal.
Vivendo de doações, Fabiana confessa que já perdeu as esperanças de ter acesso à ajuda do governo por não ter uma casa regularizada para ser reconhecida como elegível ao benefício. "Eu recebi só aquele auxílio emergencial no começo da pandemia e, desde então, não consegui mais nenhuma ajuda, já até desisti. Para a gente que é mãe o que pesa mais é coisa para criança, principalmente quando o filho da gente pede uma coisa e não tem. Para mim, é a mesma coisa de levar uma porrada", afirma.
Preconceito
Apesar da vontade de trabalhar para dar condições melhores aos filhos, Fabiana ainda precisa enfrentar o preconceito. "Semana passada, eu consegui um emprego em Vicente Pires. Mas, só porque eu falei que morava em Santa Luzia, a pessoa não quis mais me contratar. Aqui, está difícil encontrar trabalho e, quando eu dei meu endereço, o homem fez deboche ainda. O jeito é ir levando a vida com as oportunidades que Deus dá", desabafa.
Em tempos de recordes de brasileiros em situação de insegurança alimentar — somando mais de 30 milhões —, a catadora Cleia Pereira da Silva, 49 anos, moradora de um barraco em Santa Luzia, sem água e com gato de energia, desenvolveu uma anemia grave e não consegue trabalho formal por conta dos problemas de saúde.
"Eu cato e junto material reciclável por aqui mesmo. Não aguento andar longe. Levo uns dois ou três meses para conseguir juntar uma bag e ganhar R$ 50. Sou só eu e Deus aqui, dependendo de ajuda ganhando uma cestinha aqui, outra lá. Quem tem me ajudado mesmo são minhas vizinhas, que se preocupam comigo e dividem doações que ganham", conta a catadora.
A catadora tentou várias se cadastrar em programas sociais do governo, mas sem sucesso, devido à burocracia e à demora no atendimento."Desde quando saiu o Bolsa Família, eu corri atrás e não consegui. Eu não consigo entender porque é tão difícil assim", reclama Cleia.
Mesmo depois de apresentar a documentação correta e em dia, só conseguiu agendar o atendimento no mês que vem para tentar receber o Auxílio Brasil. "Muitas pessoas que recebem o auxílio ainda têm como se manter, mas eu não tenho. A moça conseguiu agendar pra mim só para o dia 22 de setembro, já tirei até a xerox do documento", conta, esperançosa de que terá sucesso desta vez.
O benefício, segundo ela, vai ser uma ótima ajuda no orçamento da casa e ainda poderá garantir o conserto da geladeira, que está quebrada. "Eu não sei nem quando eu fui ao mercado pela última vez. Estou por fora dos preços", afirma. "Outra coisa que me preocupa é o meu barraco.Por enquanto, está tranquilo, mas, quando começa a época da chuva, eu nem durmo. Sempre alaga e eu passo a noite sentada com medo do barraco cair em cima de mim", adiciona.
Invisíveis
O cientista social Sérgio Andrade, diretor Executivo da Organização Não governamental (ONG) Agenda Pública, explica que boa parte do conjunto da população beneficiada pelo auxílio emergencial durante a pandemia não fazia parte do CadÚnico, e, por isso, eles são chamados de invisíveis. Vale lembrar que o auxílio emergencial chegou a ser pago para 68 milhões de pessoas e, atualmente, os beneficiários do Auxílio Brasil é menor.
O especialista lembra que esse universo de invisíveis gira em torno de 38 milhões de pessoas — a maioria de homens (cerca de 20 milhões), e mais de 17,5 milhões de mulheres. "Na verdade são pessoas que nem são pobre demais para estarem em cadastros assistenciais como o Bolsa Família ou o Auxílio Brasil nem são pessoas que de alguma maneira estão em mecanismos de proteção social tradicionais do trabalho, com carteira assinada, ou mesmo o MEI, que permite, de alguma maneira, dar algum tipo de cobertura", afirma.
Para Andrade, os invisíveis na população são os trabalhadores informais, que de alguma maneira estão em situação precária na economia e em diferentes situações de vulnerabilidade. "Nós estamos falando dos entregadores, trabalhadores domésticos, jardineiros, faxineiras, cabeleireiros, camelôs, garçons, pessoas que de alguma maneira, em outros momentos, quando a economia está mais dinâmica, elas são absorvidas por esse movimento, por esse colchão que a informalidade da economia informal — que de fato se mostrou incapaz nesses momentos turbulentos da economia de reabsorver esse contingente da população", declara.
Apesar da redução da taxa de desemprego para 9,3% no trimestre encerrado junho, o sociólogo destaca que o número de desocupados, de 10,1 milhões, ainda é elevado no país. Segundo ele, uma questão fundamental e desafiador para o próximo governo, seja ele qual for, incluir, de alguma maneira, esse trabalhador na estratégia de recuperação econômica do país.
Obstáculos para o acesso
O desconhecimento é um dos grandes problemas para que os programas sociais alcancem quem realmente precisa. Muitos dos brasileiros vulneráveis e em situação de rua sequer sabem o que é Cadastro Único (CadÚnico), do governo federal — porta de entrada de programas sociais do governo federal, outros não fazem ideia que tem direito à renda básica.
É o caso das irmãs Michele Rodrigues, 18 anos, e Sthefany Rodrigues, 20. Elas desconhecem o cadastro e contam que não estão recebendo o auxílio devido à falta de documentação. "Quando eu tive meu filho, eu tentei fazer o Bolsa Família, mas falaram que eu não podia, porque precisava ter o título de eleitor. A mesma coisa aconteceu com o Auxílio Brasil. Eu só não tinha o título, então, não consegui", diz Michele.
Ela conta que correu atrás da papelada, mas o filho morreu antes mesmo de ela conseguir receber o benefício. "Até hoje, não consegui meu título, porque eu fui lá no local, e me informaram que agora é só digital. Mas eu não consigo ter esse acesso. Eu só não tenho o título de eleitor e a carteira de trabalho", acrescenta.
As irmãs, moradoras do Jardim Ingá, em Luziânia (GO), passam a semana na invasão da Colina, próxima à Universidade de Brasília (UnB), no Plano Piloto, onde recolhem material para reciclagem — único meio de sustento da família. O Auxílio Brasil, que foi turbinado de R$ 400 para R$ 600 a partir deste mês até dezembro, pelo menos, ajudaria muito a composição do orçamento da irmãs que levam, passam a semana na rua para levar dinheiro para a casa dos pais nos fins de semana.
"Quando a gente tem trabalho, é tranquilo, pois sempre conseguimos algo para nossa família. Ficar em casa não é uma opção", diz Sthefany. Segundo ela, é melhor ficar na invasão atrás da UnB, porque passam pessoas que querem ajudar doando uma cesta básica. "A gente vai para a porta do mercado e padaria e vê se consegue algo. Mas está muito difícil. Se o auxílio fosse liberado, eu iria ficar em casa, para cuidar do meu filho que, no momento, está ficando com a minha mãe", diz.
Falta de ferramenta
Apesar dos programas de assistência social do governo, ainda faltam ferramentas para ajudar pessoas que estão em situação de vulnerabilidade social. O especialista em relações Internacionais Rodrigo Reis, diretor executivo do Instituto Global Attitude, lembra que o Brasil é um país de dimensões continentais, por conta disso, muitas vezes, o Estado não consegue ter a permeabilidade e a capilaridade que deveria ter em termos de assistência social.
Além disso, o mapeamento dessa população de vulneráveis foi prejudicado com o atraso do Censo, que deveria ter sido feito em 2020, mas foi adiado durante a pandemia e só começou neste ano. Com isso, não há evidências para as autoridades tomarem decisões de políticas públicas de forma mais eficazes.
"O Censo é uma ferramenta extremamente poderosa de termômetro de avaliação das características do Brasil, de um país com macro regiões tão diferentes, climas diferentes, realidades e culturas diferentes", explica Reis.
Por: Fernanda Strickland - Correio Braziliense
Por: Rafaela Gonçalves - Correio Braziliense
Por: Rafaela Gonçalves - Correio Braziliense
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